Penhorabilidade do bem de família do fiador em contratos de locação e a sua aplicação jurisprudencial

Penhorabilidade do bem de família do fiador em contratos de locação e a sua aplicação jurisprudencial

O Direito está cheio de temáticas que, reiteradamente, resultam em posicionamentos díspares nos Tribunais, seja pela mudança da composição de alguns colegiados, seja pela mudança/transformação do Direito no tempo. Neste ano, a lei 8.009/90 completa trinta anos de vigência. Trata-se de um dos diplomas mais importantes em nossa legislação e acreditamos que o debate que paira sobre o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/1990 é um bom demonstrativo dessa mudança.

Vejamos. Recentemente, Daniel Ustárroz fez um apanhado do alcance do conceito de bem de família, chegando a conclusões cruciais para a compreensão do instituto: (i) O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas (súmula 364/STJ); (ii) A proteção contida na Lei nº 8.009/1990 alcança não apenas o imóvel da família, mas também os bens móveis indispensáveis à habitabilidade de uma residência e os usualmente mantidos em um lar comum (AgRg no REsp nº 606301/RJ, 4. T., Rel. Min. Raul Araújo. DJE 19.09.2013); (iii) “Não há que se falar em prazo decadencial ou prescricional para a arguição da oponibilidade de bem de família, pois a jurisprudência do STJ orienta que a impenhorabilidade de bem de família é matéria de ordem pública, suscetível de análise a qualquer tempo e grau de jurisdição, operando-se a preclusão consumativa somente quando houver decisão anterior acerca do tema”. (AgInt no REsp 1639337/MG, 4. T., Rel. Min. Marco Buzzi. DJe 23/10/2020); (iv) É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família (súmula 486/STJ)1.

Em seu art. 1º, a referida lei prevê o seguinte: “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”. Porém, como toda a regra geral, comporta exceções. E, no presente artigo, nos debruçaremos justamente sobre o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/1990.

O dispositivo legal afirma, categoricamente, o seguinte: A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Em outras palavras, o legislador criou uma exceção à regra geral, no sentido de que o bem de família do fiador em contrato de locação poderá ser penhorado pelo locado, caso o locatário não cumpra com as suas obrigações contratuais.

Acerca do desiderato almejado pelo legislador, cabe referir o que aduz Gleydson Oliveira, ao explanar que o propósito normativo era “fomentar a moradia e o livre mercado de locações de imóveis e diminuir os custos das transações”2, em clara convergência de Direito e Economia, visando a criar um panorama mais seguro ao mercado locatício. O autor complementa a análise conjuntural, expondo que, até a edição da lei 8.245/91 – que proporcionou a inclusão do inciso VII à lei 8.009/90 -, a “atividade de locação de imóveis tinha um desempenho abaixo do seu potencial, sobretudo diante da ausência de um modelo que ofertasse segurança e estabilidade jurídicas aos sujeitos envolvidos”3. Infere-se, assim, a grande importância ostentada pela inovação normativa para o fortalecimento do mercado e para a facilitação de negociações no segmento locatício.

Em esfera jurisprudencial, no ano de 2006, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar essa questão, no julgamento do RE 407.688, de relatoria do Ministro Cezar Peluso, decidiu pela legitimidade da penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, reconhecendo a compatibilidade da exceção com o direito à moradia e à dignidade da pessoa humana. Consequentemente, tal orientação foi alçada como precedente jurisprudencial no Tema 295 do STF: “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no artigo 3, VII, da lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no artigo 6 da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000”, e na Súmula 549 do STJ: “É válida a penhora de bem de família pertencente ao fiador de contrato de locação”.

Porém, recentemente, no RE 605.709/SP, a 1ª Turma do STF, em maioria apertada, adotou entendimento diametralmente contrário, no sentido de que a dignidade da pessoa humana e a proteção à família impedem a penhora do bem de família do fiador em locação comercial, sob pena de privilegiar a satisfação do crédito do locador do imóvel comercial ou o livre mercado. Outro fundamento suscitado por parcela doutrinária minoritária funda-se na alegada quebra da isonomia, em virtude do tratamento jurídico díspar entre locatário e fiador4.

Cléo Siveira e Tassia Ruschel Ibrahim, ao analisar essa temática, resumiram tal julgamento do RE 605.709/SP da seguinte forma: “Em resumo, entendeu o STF que, apesar da existência de determinação legal de que o imóvel de família do fiador pode ser alienado para a quitação da dívida locatícia, a regra não valeria para todos os casos. Isso é, afastou-se a pacificação construída nos últimos anos para se firmar entendimento de que (i) se o contrato de locação for comercial; (ii) se o locatário se tornar inadimplente; (iii) se a garantia for fiança; e (iv) se o fiador possui somente um imóvel, este imóvel não pode mais ser penhorado para liquidação do débito locatício. Assim, declarou-se que a previsão do art. 3°, VII, da lei 8.009/90, permissiva à penhora do bem de família para satisfazer fiança concedida em contrato de locação residencial, não abrangeria os contratos de locação comercial”5.

O referido acórdão, até segunda ordem, está pendente de embargos de divergência para fixação de nova tese sobre a temática.

A partir do julgamento do RE 605.709/SP, alguns Tribunais passaram a, gradativamente, modificar seus entendimentos antes pacificados sobre a temática, causando maior insegurança jurídica. Por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, possui entendimentos divergentes entre Câmaras Cíveis: recentemente, a 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de Agravo de Instrumento n. 2222923-07.2020.8.26.0000, de relatoria da Desembargadora Rosangela Telles, determinou a impenhorabilidade do imóvel de um fiador em contrato de locação comercial, justamente com base no julgamento do recurso extraordinário do STF. Em suas razões, a relatora fez distinção entre a natureza do contrato de locação (no caso analisado, tratava-se de locação comercial) para fins de afastar a Súmula 549 do STJ.

Porém, a 31ª Câmara Cível do mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de apelação 1010423-13.2018.8.26.0344, de relatoria do desembargador Francisco Casconi6, possui entendimento diametralmente diverso, afirmando, inclusive, que o entendimento do RE 605709/SP é decisão isolada, desprovida de vinculatividade, que não tem o condão de afastar as conclusões tomadas em sede de recurso extraordinário com repercussão geral.

A 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, recentemente, posicionou-se, também, de forma contrária ao RE 605.709/SP, no sentido de não reconhecer a impenhorabilidade do bem de família do fiador7. Neste, o que mais chama a atenção, é justamente a preocupação da desembargadora relatora em manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente, com fulcro nos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil.

Trata-se do mesmo posicionamento explicitado pelo Subprocurador-Geral da República, Wagner Natal Batista, em parecer exarado em 30/07/2020 no bojo do processo 0232323-06.2019.8.21.7000, ao sustentar que a decisão proferida quando do julgamento do Recurso Extraordinário n. 605.709 consistiu em entendimento isolado, sem o condão de representar efetiva relativização da compreensão cediça no âmbito da Suprema Corte. Em sua visão, cuidou-se de mero “decisum pontual, não unânime, que não tem efeito multiplicador”8.

O membro do parquet arremata seu abalizado parecer, com a seguinte ponderação acerca da importância de um entendimento uníssono a respeito da (im)penhorabilidade envolvendo o bem de família do fiador em contratos de locação imobiliária: “Se essa Excelsa Corte entende que a penhora do bem de família do fiador de contrato de locação residencial não ofende o art. 6º da Constituição da República, mesma orientação deve ser aplicada às hipóteses que envolvem contrato de locação comercial.”9

Outrossim, cumpre reforçar que, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça – autoridade jurisdicional máxima em se tratando de uniformização hermenêutica da legislação federal -, o tema resta, inclusive, sumulado desde 2015, quando da edição do Enunciado nº 549, conforme já mencionado anteriormente.

Referido enunciado sumular foi o resultado de múltiplos precedentes exarados pelas Turmas de Direito Privado da Corte Superior10-11-12, dando ensejo à consolidação temática pela 2ª Seção do STJ, para o fim de dar concretude a valores tão caros à dogmática processual civil instaurada com o advento do Código de Processo Civil vigente: valorização dos precedentes, uniformização e estabilização jurisprudenciais.

Este é o ponto!

O art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/1990 prevê, de forma objetiva e direta, a exceção do caso de impenhorabilidade do bem de família no caso de fiança em contrato de locação. Ressalta-se, ainda, que o legislador não faz distinção sobre a natureza do contrato de locação, independentemente se a fiança for na locação residencial ou comercial.

Acerca do tema, não se pode olvidar que o inciso VII do art. 3º da lei 8.009/90 foi introduzido no ordenamento jurídico pela lei 8.245/91. A lei de regência locatícia é repleta de dispositivos idiossincráticos às locações residenciais (v.g. art. 4613) e às locações não residenciais (v.g. art. 5114); isto é, o legislador ordinário foi expresso em conferir tratamentos díspares às espécies locatícias naquilo que entendia prudente distinguir, ao passo que unificou os tratamentos jurídicos nos temas que supunha análogos.

Há de se concluir, portanto, que inexiste qualquer substrato a justificar a presunção de que o legislador se omitiu ao não criar regras particulares à penhorabilidade do bem de família do fiador no contrato de locação não residencial; o silêncio do legislador representou, desse modo, escolha legislativa deliberada (silêncio eloquente).

No entanto, o RE 605.709/SP traz resultado diverso, pois, não declara a inconstitucionalidade do dispositivo legal (constitucionalidade essa já reconhecida no RE 407.688, de relatoria do Ministro Cezar Peluso, já em 2006), mas sim cria uma distinção nova, sequer realizada pelo legislador, qual seja, a distinção da fiança em locação comercial e residencial.

Tal resultado, no nosso sentir, se apresenta como típico caso de ativismo judicial. A temática do ativismo judicial já foi diversas vezes analisada, até mesmo em sede de matéria imobiliária115. Existe no Brasil uma lógica de que o Direito é qualquer coisa, desde que dito por aquele que pode dizer qualquer coisa. Novamente visitando Streck: “Porque o sujeito põe o Direito como bem entende e diz que aquilo é Direito. E a doutrina vai e repete. E está dado o círculo”16A pergunta que fica é a seguinte: de que forma o juiz pode se negar a aplicar a lei (sem que o dispositivo legal tenha sido declarado inconstitucional)? Se o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/1990 é constitucional, por que só se aplica a um tipo de contrato de locação? No caso concreto, o que se apresenta é a vontade do intérprete em não aplicar a lei. Nessa busca por fundamentos contra legem, opta pela adoção de conceitos indeterminados para fundamentar sua aplicação contrária ao dispositivo legal.

Por fim, no nosso entender, a problemática causada pelo entendimento fruto do RE 605.709/SP passa a ser extremamente prejudicial à segurança jurídica, de forma contrária ao que prevê a legislação específica e processual. Toda e qualquer modificação demandaria, impreterivelmente, alteração normativa pelas vias próprias, mediante o legítimo exercício da atividade legiferante do Estado, e não em decorrência de interpretações casuísticas e contra legem adotadas pelo Poder Judiciário, com o que, naturalmente, não se compactua.

Fonte: Migalhas

 

 

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